terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A arte de entender a subjetiva comunicação objetivamente


Benício. Os olhos turvos, média estatura, a calvície e a longa idade. O paletó asseado, a nobreza. A antiguidade, a longa descrição, as luvas na mão para que essas não sejam eivadas pelas asqueiras da vida, a hipocondria. A pontualidade na escrita. Sobretudo, a objetividade. A objetividade clássica, a aparência jônica e a vida metrificada.
Tudo isso em ruínas.
Eu, que te poupei o trabalho de que tu que tenhas que estereotipar uma personagem, ao vagar pela ilha de Bora Bora (desconfio que a falta de objetividade comece aqui), deparo com uma figura de campo energético extremamente intenso e carregado. Apesar de a contragosto, fui carregado a esta curiosa personagem por uma força maior (não, "força maior" é de uma subjetividade versátil demais, falemos de "curiosidade" - que, por ser sentimento, é ainda muito subjetivo, contudo é mais genérico)

- Bom dia! – soltei, muito polidamente
- Grunf! – retornou-me pomposamente a figura
- E então... – fui persuadindo-a de mansinho – não vai se apresentar, se nomear, explicar, estereotipar? Os leitores e as personagens figurantes – Ah, leitor, esqueci-me de citá-las, é que elas sempre perambulam pelas estórias e histórias sem serem percebidas mesmo... – estão ficando aflitos com seu conturbado campo!
- Por quê? – rodopiava a figura
- Questão de continuidade de raciocínio... sabe como é que é... trava.
- Pois bem – chicoteava a figura – sou um zigurate babilônico e me chamo Objetivo.

Agora, sim! Todo o cenário imaginativo havia mudado e nunca me senti tão tolo e absurdo por falar com algo semelhante a... Torre de Babel. Moldei-me todo para acreditar tal naquela situação tão inconcreta, de modo que pudesse me acomodar, normalizar a situação e, portanto, me sentir são. (desconfio que isso tenha sido a segunda parte da falta de objetividade.) Suspirei, mas não consegui conter o esganiço:

- Como podes tu, logo tu, seres objetivo? Se tu estás a falar com a figura do homem: a real objetividade?
- Credo, pra quê tanta pompa num papo coloquial, amigo? – o zigurate boqueou-me e como retomei o olhar com ódio e frustração, tornou-se a responder – certo, se estiver entendendo, assinta com a cabeça, ...? - e, objetivamente, me lançou um olhar com curiosidade.
- Benício.
- Benício. Certo, Benício, assinta com a cabeça quando estiver entendendo, ok?

Eu assenti.

- Vejamos: se é você a objetividade... – narigava ele – então, seguindo sua própria linha de raciocínio, eu só posso ser o que sobrou: a subjetividade. Concorda?

Eu assenti.

- Portaaanto... nada mais subjetivo do que uma objetividade sendo subjetiva – ele, incrivelmente e objetivamente sorriu – não é mesmo?

Eu parei de assentir. Esmiucei todo (claro que metaforicamente!) e gaguejei:

- A-acho que estou com um pouco de dor de cabeça.

O zigurate encarava um bem-te-vi que passava.

- Grunf! – galantemente o fez para o pássaro e imediatamente virou-se para mim – isso é erro seu, sabe... desde pequeno, quando aprendeu a comunicação oral e a aprimorou em seu amadurecimento. Se tivesse usado todas as comunicações que estavam incutidas em você quando pequerruxo – e você as sabia usar, na medida do possível -, não teria problema. No entanto, concentrou-se meramente em uma e, cada dia mais, foi implodindo as outras formas de se comunicar, sabe...
- E daí? – falei concentradamente muito são: sim, eu havia conseguido!

Como resposta, o zigurate, que agora afirmava se chamar Rosseau (perguntei: “por causa do filósofo?”, ele retrucou “nah... tive uma namoradinha que gostava do nome”), entoou a 9ª sinfonia de Beethoven – sua arcádia dentária tinha sido substituída por teclas de piano.

Eu não perdia o orgulho. Nem a pose. Mesmo diante de tamanho nonsense! Os princípios e a imagem são as coisas mais objetivas que um ser (inanimados, animados... dane-se! “Não entender” é também de uma objetividade pura) pode ter. (desconfio que isso tem sido a terceira parte mais subjetiva.)
Deus, como pensar com essa música?

Uma das personagens figurantes, entretanto, se achou de aparecer porque eu as havia apresentado no início. Era Alexandre, o Grande. E o que era pior: tendo como companhia de sua caminhada Diógenes, o Cínico – que implantara rodinhas em seu barril para um bom passeio pela fabulosa vista de Bora Bora

- Salve, salve, camarada! Eu e o Di – e apontava pra Diógenes – estamos agradecidos por ter nos impulsionado a aparição. A propósito, se quiseres alguma e qualquer coisa, peças ao Di, e não a mim!

E com sua ida, não pude deixar de notar que, embora ainda com expressão muito emburrada, o quão cheio de adornos estava o Di! Entretanto, não era ainda o que mais me intrigava:

- Como podem eles não fazer sentido se são de carne e osso?
- São personagens históricas, portanto, memória humana – e essa é passível de alterações. Não são carne e osso, mas fazem mais sentido do que você pensa: note essa cordialidade entre eles! A memória pode até vir com seus contratempos, mas, se soubermos como, dá para usá-la como representante da afetividade, por vezes.
- Não entendo. – roubava o cinismo de Diógenes.

O Zigurate, incrivelmente e mais uma vez objetivamente, olhou-me e triturou-me cada pedacinho (é claro que metaforicamente!):

- o seu “não entender” não faz o menor sentido.

Como se por vingança de ter meu orgulho ferido e por questões de princípios, invadi hall adentro daquele enorme zigurate. Subitamente, objetividade e subjetividade começaram a se difundir, de modo que o abstrato se tornava mais fácil de se entender e o concreto se relativizava. Como desconfiei que esse caos seria, portanto, criação minha, acabei – por ironia do destino – por me defender da forma mais insana que pude. Não me abaixei (embora tivessem concretos que literalmente caiam), não corri: me belisquei.

Acordei.
...
Fui olhar a janela. As pessoas passavam umas as outras. Algumas se comunicavam verbalmente. Consolidavam relações, empatias. Uma ou outra criança corria ao fundo. Tudo seria objetivamente. A menos que elas não queiram tão só e pouca comunicação.
Desconfio que esse sonho e estas idéias não tenham sido partes tão subjetivas assim.

Em prol disso, pararei de escrever e espero, então, que a nossa comunicação continue a ser compreendida.