segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Meio cheio e meio vazio

- Boa tarde, querido psicólogo, perdoe-me o atraso – sacudia os pelos – não sabia que teria de derrapar pela vala para ter de adentrar no Departamento das ideias inconcebíveis – voltava a verificar no papel o endereço do local – espero que não se importe com meu modo de fazer higiene – dizia, enquanto já lambia todo o pelo encharcado da água imunda sem algum constrangimento.

Do outro lado do divã, residia sob o assento um velho recalcado, de vestimenta tamanho GG surrada e abatida, acompanhado de uma caixa de lenços à esquerda e um monte de lenços usados empapados em suor jogados à direita. Observava com seu não tão útil monóculo a criatura que tinha invadido seu escritório.

- Olivas. Querido psicólogo, não. E você, senhor, a que devo... – retirava e recolocava o monóculo a fim de tornar mais crível a criatura que requisitava sua ajuda – por favor, antes, me diga o que exatamente você é!

- Querido Olivas, que faculdade te graduou?! Esperava mais delicadeza ao me interpelar.

- Você sabe por que tem de passar por um esgoto para chegar aqui, não sabe? Não faço muito sentido e mesmo semana passada, tive um trator com problemas existenciais como paciente... – olhava novamente a figura do divã – mas esse rabo eriçado com essa gravata engomada me assusta.

- Isso, sou uma espécie intermediária entre um hominídeo e um felino – debruçava-se de costas, enquanto retirava prontamente de seu paletó um novelo de lã – esta é uma de minhas engenhocas: meio novelo, meio iô-iô. Tenho a preguiça e a manha do gato, mas nem por isso relego os entretenimentos humanos – dizia com tanta segurança e soberba, que passava ser fácil julgar o meio-homem-meio-felino num bicho muito do sensato.

Olivas suava em bicas.

- O seu, hm... o seu problema, por favor.

Meio-felino estendia-se para se sentar, com toda a manha e carisma.

- Estou preguiçoso, Ol. Foi assim que me tornei miscigenado. Devia ser completamente uma destas criaturas. Mas perdi o foco e não sei – na verdade, tenho preguiça de pensar se sei – se isto pode me arruinar ou não. É como se o cacau pudesse formar um chocolate que é meio amargo, mas que não deixa de ter o meio doce.

O psicólogo o olhava atentamente, tentando entender qual o ponto a se entender da metáfora.

- A questão é: tudo que é meio vira dois pequenos inteiros ou só meio mesmo?

- Desconfio que seu caso seja pior e menos comestível que o exemplo.

- Você atendeu um trator.

- E você está sendo prolixo.

O meio-hominídeo se espreguiçava de quatro.

- Vou começar: era ambicioso, mas virei preguiçoso, logo meio trabalhador, meio vagabundo. Não sou magro, porque exercício físico me aborrece. Também não sou gordo, porque se queixar dá preguiça. Sou meio astuto, porque adquiri a engenhosa malícia de desviar de momentos fatigantes. Mas sou meio burro, porque franzir a testa pra muito refletir me cansa hoje e me cansará em problemas futuros com rugas. Já fui meio subordinado, depois meio CEO e consequentemente nesse “meio”, não fui nenhum dos dois exatamente ou fui os dois inteiramente em proporções menores – cuspia bolas de pelos, enquanto ajeitava a gravata – entende meu ponto? Não virei meio-bicho-preguiça porque alguém devia achar meio óbvio.

O psicólogo jogava seu monóculo sobre a mesa: “que saudade do trator!”

- Você não está meio confuso? – dizia ele então com pouco entusiasmo.

- E você meio com preguiça, Ol! – começava a se sentir ainda mais nervoso – Cuidado, se te vicias, não vá querer conversar comigo sendo meio-camundongo!

Subitamente, no divã, após uma grande carga elétrica desencadeada pelo acelerado e irreal batimento cardíaco ocasionado pelo seu meio estresse, meia altivez – o que Olivas e nós, particularmente, julgamos sem sentido – meio-hominídeo-meio-felino metamorfoseou num meio hominídeo-meio-enguia.

O caro Ol bebia um gole de café “trator, trator, ahhh trator...” e se dirigia à porta, pois já não era mais seduzido pelos ternos olhos de seu antigo paciente bola de pelos.

Num desatino final, então, a parte hominídea, ainda molhada da água suja, recebe uma descarga de 3 ampères da parte enguia. Enquanto enguia, se sentia feliz o hominídeo por realizar a sua preguiça de viver, enquanto a outra parte desfrutava o prazer de não participar do impacto que era deixar de existir.

A nossa sorte é que o fim, por ser uma estória (mesmo meio estúpida), é inteiro.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Com açúcar, com Moleskini

Toma, meu querido, esse texto é todo pra você. Pode não ser nenhuma ida ao moinho ou mesmo como sentir o orvalho da manhã sob a inexplicável visão miraculosa de cães se engalfinhando numa celebração tórrida e afável do amor. Mas é maior que isso, coração. É um prato de paciência encardida que, por alguns minutos, decidi esterilizar em algumas páginas de um, então protegido, Moleskini. É uma caixa de Pandora às avessas. É uma vastidão da subjetividade das palavras que, com esmero, te aprofundam num bando de palavras preguiçosas - a característica pecaminosa da preguiça surgiu por conta de sua vulgaridade em querer se deleitar com todos os corpos que puder encontrar, portanto não me julguem pela carne fraca - e de credibilidade questionável.

Todo pra você, querida lobster, esse nosso refúgio que é também um limbo da nossa terceira dimensão do sonho, o globo eclipsado que existe mas não está. (como explicar o verbo to be com você, seu lindinho?) O fosso do início da matéria e também da não-matéria e que, ainda que perdure esse mesmo buraco de existência em cada indivíduo em suas relações interpessoais - e é, portanto, um dos responsáveis por tanta falha de comunicação entre as pessoas - ainda assim eu te dou esse texto; nosso buraco mais embaixo, a pequena ultrapassagem na barreira de compreensão entre dois seres.
E eu dedico, com todos os suspiros celestiais, para esse caloroso amor desejado por Boris Grushenko que engloba o intelectual, espiritual e, o tão justo, sensual.

Toma, toma, toma. Toma logo essa caprichosa matriz genérica de texto que, após acordar certa manhã de sonhos intranquilos, fiz pra você. Toma, que é pra nunca mais duvidarem da minha sensibilidade no amor após fixar o olhar num ponto do quarto e muito franzir a testa.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Enxaquecas, irrelevâncias e mangas

Tudo começa com certos dias de uma específica malemolência e enxaqueca (queixa, inclusive, quase nunca extinta em minha vida).
Qual a minha, portanto? Protelar mais um trabalho para depois. Ok, isso eu consigo. Tirar certos proveitos da fraqueza, como um afaguinho extra de próximos: ai, como dói, como dói, fica aqui pertinho, por favor? Ok, isso eu também consigo.

Dói tanto, aliás, que até intercambiar do conto pra crônica — gênero que, por minha discrição e falta de vontade de conversar diretamente com as pessoas, deixei cair no meu ostracismo particular — tornou-se meio sedutor.
Mas, justo agora, o maior de todos os conselhos (exceto quando dado por Chico Buarque) eu não consigo segui-lo à via de regra: já havia tentado dormir e, ainda assim, não passou.

Sucederam-se, então, horas e horas feitas a esses pequenos golpes de solidão barthianos (notem como minhas expressões estão sendo apelativas para executarem, com sucesso, o segundo exemplo de aproveitamento de fraqueza, no qual vocês, em um honroso e nobre gesto altruísta do dia, podem ajudar a constituí-lo), até que... foi me acontecendo. Eu, que já tenho a cabeça compromissada com um engajamento sério e promissor na filantropia com outros mundos, planos e dimensões, fiquei horas recebendo imagens sem, no entanto, processá-las devidamente nos confins do meu lobo occipital – que tão antes e com tão esforço, ele fazia.

Foi aí que surgiu, simultaneamente com a fraca voz, a falta lexical, as orações subordinadas sem as suas principais (“... que eram lânguidos esses abraços de frescor parisiense”, “... que comia com tanta veracidade, enquanto lembrava do professor”), perpassando até então por aleatórios pensamentos que, se não tinham sentido semântico e/ou sintático, eram ainda inocentes. Foi quando beirar a superfície do pensamento não foi suficiente. Eu sabia, quase podia sentir a construção de “A bunda, que engraçada...”. Nem a linha de raciocínio mais leviana passa incólume à experiência de um indivíduo. Há alguma profundidade pueril nas idéias leves (que provavelmente são apreendidas em uma dessas viagens filantrópicas transcendentais – e que não se entendem bem na volta, porém).
Foi assim, quando o organismo, sem respeito algum a mim e ao meu enjôo da enxaqueca, resolve atestar fome.

Quer iogurte, querida? Não, mãe, muito doce. Mas você também não quer jantar. Não quero comida de verdade, nem pão, nem nada salgado; é algo meio gelado, acho. Ah, então tem sorvete, querida. Não, não, é muito doce também. Então, o quê? Ah, tem manga? Sim, é isso! – dizia eu, após um perfeito e exato fluxo de consciência. Mas você acabou de comer, lindinha, você só está comendo isso. Que o seja, traz, por favor.

Minha mãe, pensando, ergue os olhos para cima e para esquerda (e assim sei que não mente, mas está a lembrar de algo, acredito, realmente relevante nesse momento decisório sobre o rumo que minhas posteriores horas de pequenos golpes de solidão irão tomar)

– Mas, meu amor, eu não sei cortar daquele jeito.

Entenda “aquele jeito” o jeito que a moça que trabalha aqui em casa sabia. E ah, eu também não sabia. Mas, e agora? Mesmo os pensamentos levianos podem se tornar ideias fixas – e não tem nada de inocente na profundidade das consequências de uma ideia assim, certo?
Então não quis. Se não era cortado daquele jeito, então tinha de comê-la aceitando o ritual de ter de se melar e passar pela casca e pelo fiapo que engloba o “chupar uma manga” (além do fato de, semiologicamente falando, eu odiar esse verbo e ter de ser obrigada a usá-lo, pois não poderia negar o processo)

E fui ficando assim, solta, a condicionar a melhora de cada tinir da minha cabeça à essas mangas e irrelevâncias. Mas é inútil dormir, afinal elas não passam.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Strifon e a outra saúva

- Você não gostaria de falar sobre isso? – batias as antenas, enquanto interceptava a outra saúva que revezava seu ato ora de chafurdar em terras vermelhas lameadas literais, ora nas universais – nos confins dos campos abstratos que seu olhar, tão absorto como estava, alcançava.

- Não, não quero. – respondia a outra, de súbito.

Strifon (numa melhor tradução do dialeto sauvês) inquietava-se, num frêmito de preocupação exaltados entre uma batida e outra de sua antena, preocupava-se:

- Não é perigoso estar aí? – e esperava resposta da saúva – o que te aconteceu?

Acontece que a outra saúva não respondia. Dentre sua imersão, tornava-se ainda mais rubra com toda aquela terra lameada. Em movimentos desconcertantes, contudo, tornou a falar:

- Você está machucado, Strifon?

Strifon voltou a olhar em torno de si, um de seus pares de pernas estava machucado, mas como ainda conseguia se locomover bem, quase não o tinha notado. Sua carapaça de quitina que a revestia também já não estava das melhores. Não lembrava, entretanto, o que o teria causado isso.

- Engraçado te entender agora, Strifon – exuberava-se a saúva – ainda há pouco, acreditei estar com problemas nas antenas.

- E o que te aconteceu, por fim? Você não quer mesmo falar sobre o que estávamos discutindo de início?

- Não, não quero. – irritava-se a saúva – Sabe, ali, naquele lugar – e apontava a uma determinada área à esquerda – eu iria depositar fungo e matéria fecal para o novo sauveiro que planejava. Ainda não o fiz, porém, sinto alguma dor, tinha certeza que algo tinha acontecido às minhas antenas – olhava para Strifon com ternura – mas vejo estar bem.

- Você deveria ter jogado seu conteúdo lá. Por que não o fez?

- O sauveiro pode esperar, ele está pronto, o tenho em mente. Apenas ainda não o engendrei, de fato, não o finalizei – olhava e perscrutava intimamente Strifon, que havia criado uma densa empatia por essa parda formiga que também a encarava – estou preocupado com você, Tri.

Strifon, no entanto, preferia desvirtuar o assunto:

- Podemos continuar, por fim, onde estávamos?

- Sim, sim. – e batia as antenas – foi quando veio a chuva, Tri. E eu, antes um sujeito clivado de Lacan, sabe como é, não resisti: decepei e desmembrei-me todo. Você não sabe como é, foi terrível ter de testemunhar esse momento ontológico – a gente nunca acha que acontece com a gente – e toda uma amálgama de discursos de saúna destrincharam-se sós, em total plenitude delas e, então, suspenderam-se no ar. E nós, que somos esse emaranhado cheio de nós de milhares de vozes, e eu aqui, afundando-me enquanto desfruto esse único e genuíno discurso do qual me valho e preciso agora. – revolvia todo seu abdômen de lama enquanto falava, num gesto que beirava um ato infantil – Se você voltar para o local onde seria o novo sauveiro, Tri, irá – ou, ao menos, se puder considerar uma faceta de mim também um meu “eu” – me encontrar lá. Em um novo discurso, entretanto.

Strifon olhava-o incrédulo. Em qualquer dia, não entenderia asneiras alheias de saúva alguma. Mas hoje, naquele particular olhar que havia recebido, entendia. Em um campo que transgredia a objetividade, é verdade. Mas entendia.

- Estou curioso para a finalização do seu sauveiro. Mas te compreendo.

A outra saúva ignorava o que a parda lhe dizia.

- Estou preocupado com você, Tri.

- Não devia – e então, a essa altura, tinha acabado de decidir em também resvalar na terra umedecida – eu senti sua dor hoje, sabe, nas antenas. E, no entanto, elas estão intactas e justo o que aparentemente está machucado, em mim não me dói nem um pouco. – parava um pouco e pensava – Estamos bem, portanto?

- Estamos – suspirava a saúva e desenhava, por fim, algum sorriso numa face, até pouco tempo, inexpressiva. – Olha, eu não gosto de tanta subjetividade, mas quando surge esse vórtice dessa alguma coisa e, então, como é o meu caso, você depara com esse único discurso, em toda sua mais pura e quase cruel chafurdação, não tem nada mais forte que a subjetividade.

- Você sabia que subjetividade é o que salva as pessoas o tempo todo?

- Você acha?!

- Se você não acha, então volte com seu discurso que te espera no projeto do sauveiro.

- Eu, não. Não agora. Dizem que lama faz bem.

- Parou de chover, notou?* – dizia Strifon, e dessa vez era a vez dele de esboçar um sorriso, uma vez que detestava quando a terra ficava daquela forma. (e, particularmente, não gostava de vermelho no abdômen.)

- Na verdade, não.

Levantou-se, portanto, Strifon – que apresentava mais disposição que a outra saúva – e deu apoio a outra para subir em cima de si.

Escuta: vamos falar de coisas ternas e subjetivas, enquanto você procura todas as suas milhares de enunciações dispersas que lhe constituem. Estou curiosissímo pra ver esse novo sauveiro.

*and it rained all night

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

"Mundo Pet"

Engraçado ter lido justamente essa HQ na semana em que falava do mediador.
Se de um lado, meu mediador desabafava sobre sua inatividade por ter sucumbido ao mundo externo ao seu calabouço metafísico, por outro, urgia a minha necessidade do direito de réplica a esse mal agradecido e falso moralista.
E foi assim, passando a conhecer o bichinho rebelde de Lourenço Mutarelli, que decidi digitar um discurso espontâneo (se eu o escrevesse em folha e caneta, certamente este meu atual mediador ousaria tomar a voz, ainda que preguiçosamente) que não se direciona diretamente a você, mas tem um destinatário, afinal — e peço que não passem da superfície desse texto, porque o meu objetivo é que o canal seja a própria implosão deste remetente que vos fala.

E invejei, então, esse bichinho: assim meio dócil, meio canino, meio humano, meio rebelde, cru nu débil. E fodendo a cabeça de Mutarelli.
E voltei a olhar ao meu, meio suntuoso, requintado, de um ar meio jônico — mas inutilmente sempre dormindo. Nos poucos instantes que conseguia acordar quando eu o sacudia, me vinha com aquela peneira na mão: "não se esqueça do travessão, querida!" "nanani-não, nada de palavrões e nada muito sexual também, você não leva jeito. Fala metaforicamente que é melhor!", "você não acha que é meio cedo falar sobre isso agora? Aposto como você faz algo melhor se esperar um tiquinho mais". E, quando eu o conseguia fazer levantar-se de sua Domus Aurea — que eu mesma preparei especialmente para ele, inclusive — ele retrucava "É texto metalinguístico? pode ser que eu aceite, sendo assim"

Ele nem sempre foi assim. Na verdade, ainda lembro de alguns mediadores meio troll doll de outrora que, se não eram ativos, ao menos não procrastinavam quando eu pedia.

Portanto, caro você (espero, 3ª pessoa que me lê, que você tenha beirado a superfície textual até agora, porque a ordem gramatical das coisas alterou-se há algum tempo), se você quer mesmo me deixar sozinha com a mera produção factual, de pesquisa ou acadêmica, peço apenas isso: pare de foder com a minha cabeça.

domingo, 5 de setembro de 2010

O Mediador


Era, portanto, hora de confinar-se em seu próprio calabouço metafísico. Exposto sob espectros de luz de existência, então, duvidosa, ele matutava sobre suas ideias que transgrediam os paradigmas convencionados da realidade terrestre.
Era curioso o processo da criação - a existência desse sujeito perpassava e acompanhava todo o disco protoplanetário que emergia após o surgimento de uma estrela proveniente do seu próprio caos; só que nem ele mesmo existia por completo como imagem. Era provável, por enquanto, que fosse apenas um eco de existência proferidos por alguém de ordem superior.

Mas materializou-se, por fim: não tinha nada de extraordinário, o mediante era apenas um sujeito com um semblante taciturno, desgastado e resignado com sua própria atividade, com bigode e sobrancelhas despenteadas. Porém, não era o único nesse mundinho de valha-me-Deus: existe um espaço onde residem os discursos humanos um dia já ditos (pela palavra ou não), no qual habitam como devaneios, todos fundidos unilateralmente, com assuntos desorganizados, quase inviável de transmudá-los e, então, transportá-los através de palavras – são chamados, assim, de ideias inefáveis.
Os outros mediadores desses transporte de mensagens, contudo, geralmente estão sempre dispostos e, por isso, trabalham regularmente, veiculando o discurso àquele a que o deseje comunicar, dia após dia.

Não se pode, porém, julgar a indisposição de nosso mediador em trabalhar. Afinal, não se tratam de mensagens factuais, ou corriqueiras e banais, mas possuem a especificidade das metáforas, do fictício, do significado implícito ou não, e todos esses outros recursos que demandam uma das facetas do literário.

O que este mediador do qual tratamos tenta evocar agora – após uma breve visita à pocilga dos discursos – é de que é também justa a vida leviana da pessoa responsável pela administração do canal das mensagens (no caso do mediador: a escrita), com tudo de mais dionisíaco e passível de fazer sentido social.

Entretanto, ainda que se acentue a exaustão no rosto durante o processo de seu trabalho, o mediador muito sente pela interrupção da transmissão de suas mensagens e anseia, encarecidamente, que esse canal não se esqueça também daquilo que não é passível de fazer sentido.

E que o deixe trabalhar.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Memoria praeteritorum bonorum

Num cenário cuja importância é ínfima, lá estavam ele e ela (cuja importância do grau de intimidade deles é ainda menor) a contemplarem o único vazio de vazio que era o próprio quarto: a própria janela, embora fechada — cuja importância é, finalmente, desprezível.

Mas veja, bem, foi melhor assim. Você ainda vai perceber — falava ele exasperadamente a uma ela transtornada e soluçante.

Bem, mas que bem? Era a melhor coisa que me tinha acontecido — assoava seu nariz na manga dele e berrava encarecidamente. — aqueles olhos ternos, os lábios miúdos, acanhados... o rosto abarrotado de pêlos (embora sempre bem feitos) e o que dizer de todos seus gestos complacentes e seu modo galante de se portar? Tinha o humor ácido, embora refinado e sutil. Era um 'gentleman', embora também soubesse ser homem — relembrava-se e parava num súbito com um olhar distante, em seguida, tornava a chorar num berro — ahhh, se sabia...

Estou dizendo: isso passa, minha querida

E por acaso já aconteceu com você?

Acontece com as pessoas o tempo todo. — parava e estudava as próximas palavras — e todas elas continuam a viver, sabe. Até, quero dizer, terem de ser perturbadas pela expectativa de vida do país em que estão, claro, e aí usadas como fonte de estudo. Mas isso não vem ao caso.
Ela tornou a berrar.

Olha, se é que isso serve de consolo... se você fosse mil pessoas, sabe, você causaria algum déficit no seu país. Mas você é só uma! Olhaí — e sorria — que beleza!
Ela tornava a berrar.

Ele, então, meio constrangido, buscava ensandecidamente uma solução para tamanha falta de jeito:

Veja, meu bem, vamos fazer uma análise introspectiva do seu caso, tá? Vamos, relembre-se: o que mais te satisfazia nesse relacionamento?

- Então, não sei decerto. Ahh, se você o conhecesse, também se apaixonaria torridamente. — ela ignorou seu olhar de estranhamento — Como dizia: aquele humor refinado, aquela mente cognitivamente privilegiada, incomensurável e ginecologicamente atraente... — atordoou-se um pouco, mas tornou a olhar para ele com um resto de sobriedade — Digo, acho que eram seus olhos ternos e a boca carnuda mesmo.

Os lábios não eram miúdos?

Isso. Miúdos. É que dependiam do ângulo do espectro de luz que incidisse sobre seu rosto.

Ah. E os olhos eram turvos, não eram?

Isso. Intransponíveis! Mas quando conseguia captá-los, de alguma forma, não pareciam querer bem sequer a uma formiga.

Ele, então, virou-se um pouco para a janela como quem não soubesse exatamente as próximas respostas, embora pudesse prever certeiramente, pelo menos, suas reações posteriores.

... E o rosto plano, macio...

Não era abarrotado de pêlos?

Sim, era. Digo da parte feita, então. — ela olha de volta atordoada a ele — Na verdade, não sei o que está me acontecendo. É você quem está me fazendo isso?

Atualmente, não. Entretanto, considerando o seu recorrente comportamento, você pode me tornar um mago ou o que bem entender quando quiser, logo depois!

Ela o olhava e perscrutava intimamente seu rosto. Num súbito, então, arreganhou seus olhos e boca, como se tivesse sido guarnecida da mais completa e divina luz:

Mas, meu Deus, você só deve ser um mago!

Querida... — ele falava pacientemente — Não sou. Nada contra, mas, vai por mim, não sou.

Ela olhava

— É, sim.

— Não

— É!

Dane-se — virava a cabeça — Continue sobre sua quimera...
Pois é, se bem me lembro o seu rosto espetava tal como um cacto mesmo. — lembrava-se — Credo, e tinha um humor de um pedantismo... desnecessário! Lembro até de certo tempo que comecei a fazer certo esforço para rir de suas piadas incômodas e nem um pouco elegantes. E os olhos? Tinha mais pés-de-galinha que a própria ave. E a boca? Tinha uma mandíbula enorme, já o vi rugir certa vez. À noite, compartilhando da mesma cama que ele, tinha péssimas experiências oníricas envolvendo o dilaceramento de meus braços como resultado de mordidas sanguinárias dele — talvez porque o tenha visto almoçar certa vez. Espreguiçava-se de quatro e restos de papel higiênico sempre o acompanhavam tornando-o um animal rabudo e ajudando a definir, por fim, esse bi-zar-ro ser sub-humano que eu... que eu... ah, que eu tive o quê mesmo?

Um relacionamento, se me lembro bem.

Ah — tinha seu último tom de perplexidade — É isso. Obrigada, você, de todo jeito. Acho que realmente passou...
Virou-se e caminhou em direção à janela. Abriu-a. Enxergava tantas outras quimeras. Pensou que não, então. Portanto a fechou. Abriu de novo.Vista limpa de bestas mitológicas. Não sabia mais distinguir o real e o relatado homem. Entretanto, não era no quarto oco que iria conseguir ativar sua memória - além de que, sem o quarto, não se tornaria essa pessoa ensimesmada que estava sendo.
Fugiu, portanto. E sempre preferiu pensar que o tal homem do quarto era um mago — e de que havia escapado de um brutal assassinato por um ilógico leão, do qual ela própria havia sido cúmplice de sua criação.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Os Nuncas



Eram dois siameses e um seu estado integral. Os gêmeos Nunca-Passado e Nunca-Futuro, praticamente, reverzavam suas atividades, habitados em suas poeiras de nuvens ontológicas, confabulavam e discutiam sobre de quem era a vez de morder a língua. Nunca-Passado era um velho e Nunca-Futuro, obviamente, também. Tinham aparências diferentes, entretanto. Pretérito Imperfeito (com ou sem subjuntivo) - era um dos pseudônimos de Nunca-Passado - tinha a pretensão pelo arrependimento, pelo sentimento de impotência e afins - mas, por vezes, era um tanto orgulhoso, sim; estava na genética dos Nuncas. Se metia em frases tanto como "Ahhh, se eu soubesse, nunca teria...", como também "Ahh, mas nem se ele me amasse, nunca que eu ia...".
Futuro-Nunca, não. Ops, Nunca-Futuro, nessa ordem. É que até mesmo a narração tropeça por querer ostentar tão grande e insigne função desse tipo Nunca: todos o desejam, todos vivem por ele, todos anseiam em vê-lo, mas sempre sem sucesso. Na verdade, é sempre o mais citado, entretanto, sua carapaça inatingível se transforma imediatamente no Nunca-Presente. Enquanto Futuro, possui uma existência ínfima, quase um sopro vital que desaparece a cada "mas é claro que eu nunca farei isso...". Com seus milésimo de trilionésimo de segundos, o Nunca-Futuro consegue gozar de uma felicidade plena de vida. Sua desmaterialização, contudo, consegue ser tão, mas tão imediata, que certas cadeias simples de carbono que pairavam por aquelas bandas que se ofereceram como testemunhas oculares e o próprio Nunca-Passado apenas identificaram o momento de transformação do Futuro-Nunca em um elemento químico não terrestre. Alegaram, entretanto, que, com sorte, poderiam vê-lo, de fato, no futuro.
A comissão de linguistas, professores de gramática e afins encerravam o caso e acabaram, equivocadamente ou não, por tachar o Nunca-Passado como "o mais próximo que temos do Nunca-Futuro, até então". Com uma pontinha de desanimação, claro, pois sabiam que "o passado nunca iria construir o futuro. Nunca!" (exceto quando colocavam hífen em algumas palavras da frase e alteravam um pouco a pontuação, fazendo com que assim, pudessem a usar freneticamente).

A verdade é que o Nunca-Futuro era o messias dos linguistas, pois sabiam que quando ele comprovasse Sua existência, faria com que todos eles também finalmente entendessem a Santíssima Trindade dos Nunca e, certamente, por pertencerem a um então seleto grupo que entende algo tão complexo assim, seriam salvos.
Entretanto, enquanto isso não acontecia, discutiam, pois, a banalização do Nunca-Presente, que possui grande acomodação no tempo constante de frases como "eu nunca faço isso" e, consequentemente, atrela fundamentalmente seus atos também no passado, além de gerar expectativas num futuro que ele mesmo desconstruirá e desconstroi. Sabe-se também que, num gesto muito insolente, o Nunca-Presente se aproveita da falta de espaço de tempo do futuro para proferir frases que possuem a autoria do Nunca-Futuro.
Nesse espaço de poeira cósmica em que estão insertos, então, os que sobraram, Nunca-Passado e Nunca-Presente, discutem quem possui a natureza mais indefectível dos dois e, assim, alegavam coisas como "o único espaço de tempo que existe é o passado: tudo não passa de um registro de memória" e o outro replicava com "IDIOTA!! O QUE ACHA QUE ESTAMOS FAZENDO AGORA?!", o outro treplicava "o que você acabou de dizer já é passado. E isso também, e isso, e isso, e isso...", até receber um chute do outro que terminava com um "POIS TOME ESSE PRESENTE!!"

Confusos, atordoados e sentindo-se um pouco culpados, os linguistas, filósofos, professores, pesquisadores da comunicação e até mesmo os desocupados resolveram entrar num consenso e substituir os Nuncas pelo Jamais.
Mas quando descobriram que também isso não daria certo, resolveram abrir a mente para uma nova semântica nas próximas frases e aceitaram adotar o incerto "pode ser" ou o "quem sabe".
Cansados da falta de sentido que haviam criado e preocupados com a popularização das novas expressões, esses estudiosos resolveram cunhar uma sentença e soltá-la por aí como provérbio popular: para cada indivíduo incrédulo sobre a morte dos Nuncas, rapidamente diziam "Nunca diga nunca!"

E, assim, nos parece que o ciclo e a maldição dos Nunca pode ser que não tenha acabado. Quem sabe?

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A pedra


AVISO: O Blogspot.com cansou de não se responsabilizar pela leitura e, atualmente, simplesmente não se importa.

Se algum dia me fosse concedido a dádiva de poder mudar qualquer coisa que considerasse como um fardo na vida, certamente seria o de ser o narrador onisciente. Longe de mim parecer ter má-vontade ao descrever minhas histórias. Mas entendam: defrontar com as mais absurdas e inverossímeis situações acaba desatinando qualquer ser vivo. Aliás, pertencer a um plano literário é relativizar minha existência: falo, penso, conto histórias, mas estou vivo? Afora isso, minha presença onisciente é o que vitaliza, de fato, as personagens de terceira pessoa. Antes de minhas observações, são apenas chumaços de inconsciência, uma neblina com um discurso inteligível para humanóides. E é minha função, portanto, converter essa comunicação - tão abstrata - em um canal mais acessível, como a língua.
O que mais me dói, porém, é jamais receber a real empatia do leitor acerca do meu tratamento com as personagens: ele jamais saberá - talvez chegue a saber, mas dificilmente valorizará - o quanto as cultivei, estudei e as guardei. E o quanto me dói a cabeça por estar em cima do muro que me separa entre o verossímil e o inverossímil.

Pois bem, sei que minhas procrastinações te irritam, mas como nunca manifesto minhas observações pessoais, achei que um pouco de desabafo não faria mal a ninguém. Perdoem a catarse e comecemos, leitor incompreensível:

Estava eu, sob a sombra de uma árvore, regado a mansidade e água fresca, quando - num ímpeto - um certo indivíduo velho e rancoroso perfura cenário literário adentro, de modo a rebater uma vastidão de letras e palavras desconexas diretamente na minha cara - soube, nesse instante, que seria mais uma daquelas cenas.
O velho, que comecei a simpatizar (talvez pela minha natural compaixão) aproximava-se de uma, igualmente velha, pedra.

- Boa tarde, minha cara. - dizia com certa dificuldade à pedra - Dias ensolarados estes, ein? Estão de rachar - e voltava a olhar, com alguma graça e malícia, para a rocha.

A pedra parava. O velho olhava com certa confusão entre o incômodo e a curisiodade. Resolveu se sentar.

- Sabe... agora que cheguei nesta etapa, percebo como é engraçado essa coisa de vida. No começo a gente chora, não quer participar, é obrigado a usar uns panos, sabe - olhava de volta para a pedra - Você não teve isso, não foi? - voltava a olhar, como se esperasse uma resposta.

A pedra rochava. O velho, então, continuou:

- Pois bem, daí surge sua mãe e lhe ensina umas coisas e lhe dá colo, e aí você sente que tudo pode ficar (e até fica) mais gostoso - olhava meio pra cima - e aí é a fase que você começa a aflorar o que depois vai acreditar se chamar "imaginação"... você acredita nisso? É engraçado como a língua pode tirar certas fortunas de uma criança. Você imagina que um menino tem um mundo todinho paralelo a este que conhecemos e posteriormente irão fazê-lo chamar isto de "uma invenção sua"? Eu, pelo menos, nunca acreditei que uma coisa que julgasse ser real não o seria por não pertencer a uma mente coletiva - falava com um tom na voz que beirava a brutalidade.

A rocha só pedrava, ainda assim.
O velho suspirava nostalgicamente e se deitava sobre a grama.

- Amanheceu rápido, não? - esperou uma resposta novamente, mas voltou a falar rapidamente - Digo, não tenho nada contra o dia, contudo gostaria que a noite demorasse mais - tossia - Isso me faz pensar na vida também. Tantas vezes que pedi uma tréguazinha ao tempo, sempre pedi "calma lá com a pressa". Só tenho uma vida pra viver e com tantas outras vidas. Vinte e quatro horas é tão pouco tempo pra um dia e, basicamente, nossa vida consiste unicamente neste dia - retornava o olhar cansado para a pedra - mas ele me respondia igualzinho a você.

A rocha rachava.

- Foi quando me tornei ranzinza. Não sei se me tornei assim reclamão por não conquistar plenamente meus objetivos ou se do contrário: não conquistei minhas ambições por ter me tornado ranzinza - franzia a testa, de modo a acentuar suas rugas; sua expressão havia conseguido se tornar ainda mais deprimente - Foi quando, então, me defendi do tempo. Entendi que não devia ter sentimento por alguém se não quisesse padecer ao ver esse objeto do meu afeto fenecer. Eu sabia que teria sentimento demais e me perguntei "se o tempo, que age diretamente com as pessoas, se mantém sempre vivo e com grande poderio sem necessariamente ser bom às pessoas... por que eu tenho de confiar... no afeto?"
O sol, à medida que ia descendo, incidia diretamente na pedra, fazendo-a rachar mais. Se alguém, além da pedra e de mim - que estou acostumado com esse tipo de diálogo de personagem - estivessem ouvindo aquele velho, certamente morreria antes dele.

- E então aprendi a lidar com a vida. Peguei-a de jeito, sabe. Fui duro como você. Não sei dizer se fui racional. Essa palavra é, em alguns casos, tão destrutiva assim como "imaginação" é pra mim: afinal, como defini-la se a gente tem referenciais que se divergem em relação ao que consideramos sensatez? - pensava - Como falava: trabalhei, dei duro. Deixei de lado um pouco novas oportunidades e pessoas, mas cumpri meu papel... acho.

O velho se acomodava mais na grama e falava com orgulho:

- Foi uma vida extenuante, mas lucrativa. E não é que eu goste de dinheiro, pode olhar pra mim e notar que sou simples - e se exibia em frente à pedra - mas precisava de um subterfúgio pra evitar o tempo. Tem gente que chama isso de "ideologia" - tosse forte e galantemente pede desculpas - Vá lá que seja. Eu cumpri minha missão. Fui bem nos negócios, tive uma vida estimuladora para os outros.

A pedra rachava mais fundo. Começava a estalar. O velho se assusta, mas, ainda absorto em sua linha de raciocínio, torna a voltar a falar:

- O que faz me sentir assim, meio vazio, meio sem guia agora, eu não sei. Temo ser a volta do tempo a atacar contra mim, temo ser essa velhice, mas acho que temo ainda mais não ser nada disso.

O sol estava a pino. A pedra estalava - rachava rachava e rachava - até que vários pedregulhos foram atirados, ricocheteados e estatelados no chão. Uma enorme cratera abriu-se na pedra que, com muito desengonço e numa voz grave e quase inteligível - juro, esta cena que é exdrúxula até mesmo para mim, narrador, que já deveria estar acostumado com este tipo de coisa - balbuciou:

- Que inveja de você que ao menos teve chance. Quem me dera um dia poder amar.

"Quem me dera um dia poder amar" - exatamente assim, sem saber se "dia" é objeto direto ou oração intercalada - eram as ondas sonoras que tinham a exata vibração que poderiam rachar a cabeça do velho.
E uma vez que ele não pôde falar, a pedra parecia ter roubado as suas cordas vocais e o deixou estático, duro, como se naquela específica conversa, só um pudesse falar e só um podia ser pedra - embora fosse difícil eleger o mais apto para tal cargo.

- Quem me dera um dia poder amar! Quem me dera um dia poder amar! Quemmederaumdiapoderamar!... - repetia a frase disparadamente uma atrás da outra

O sol já começava a baixar e a querida noite do pobre ancião estava por vir. Ele, entretanto, com o olhar completamente tomado pela pedra, a via expressar-se, com todo sentimento que podia, "Quem me dera um dia poder amar" e franzia seu rosto, enrugava-o, mas não entendia.
A pedra não tinha mais sol e não racharia, por enquanto - mas sabia que alguém iria fazê-lo em seu lugar.

E este foi todo o relato que tive. Não quis continuar naquele ambiente que me parecia agora inóspito e, então, voltei para cima do meu muro que separa o literário do não-literário. Não deveria ter me assustado, mas confesso que essa bizarrice me provocou medo - e, dado minha condição de personagem, tive até medo de ter esse medo.
Saí de lá e prefiro, por um instante, esvair minha confusa existência porque tive sensações que diria serem vagas e esquisitas demais para mim... mas confesso que mais incompreensível ainda é uma pedra "pedrar" pra sempre.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Vaca, não era?

O problema era ser vaca, não era?

Literalmente - e não o adjetivo de mau cunho. Mas bovina: gorda, malhada e tudo.
Talvez. Mas se tivesse nascido plâncton, o problema seria ter nascido plâncton – e seria um problema ainda maior o fato de, porque nasceu plâncton, não ter problema.
“Quem me dera ser um peixe” proferiu, em algum súbito de inconsciência, um tal de Fagner, e eu o teria parafraseado - se ele não tivesse perdido o fluxo de bons fluidos do seu inconsciente e, por um deslize, enveredado por caminhos de más intenções em suas hipotéticas habilidades aquáticas.

Mas esqueçam tantas delongas: o problema era ser vaca. Não teria outra natureza específica que eu almejasse, era só cansaço mesmo – mas se tivesse nascido uma coisa diferente a cada dia, seria constantemente a inconstância, portanto, metamorfose, outra natureza fixa da qual me cansaria, não era? Pensei se teria dado sorte se tivesse nascido humana. Daí lembrei que, como então mulher, acharia um problema achar que nascer como ser humano é um problema – então descartei a ideia.

Voltei a ruminar. Sei que parece ridícula a idéia do pasto em concomitância com os pensamentos filosóficos sobre a vida, mas, em minha modesta opinião de vaca apenas, há diversos comportamentos humanos também questionáveis e nem por isso estou discutindo com você.
Voltando: voltei ao meu pasto. Não era um peixe, já havia me conformado antes mesmo da música – mas tive uma fisgada. Ontológica, digamos. Sabia que se tivesse sido humana, estaria tão intrigadamente em torno do meu âmago que dificilmente pensaria na idéia da comunhão com outras vidas – ora, somos isso tudo aqui, todo esse cosmo, e não é porque entendo intimamente este corpo que carrego e que me pesa que sou apenas isso; como se o meu presente é a vida, o existir, e não este corpo? - e, portanto, dificilmente deixaria de possuir uma vida só humana.

Mas a vida – que por ser tão livre precisa ser segredo - só não é desvendada porque antagoniza o corpo – que é prisão. Mas tenho culpa se eu, vaca, desejo mudar isso nesta vida?
E mudaria, acharia um modo.
Discorreu Luís Fernando Veríssimo – sim, criei a habilidade de ler aqui, sou um animal bovino que sabe desfrutar astutamente das vantagens do mundo literário - em alguma crônica que Napoleão Bonaparte tinha a grande ambição de poder escrever, como não conseguiu, partiu para o plano B de dominar o mundo.

*suspira*

Pensei em mim e como me livrar disto – drasticamente, percebam - que é prisão: bem, escrever não seria para uma vaca nem mesmo aqui – tenho cinco minutos de fama agora, mas e quando minha estória acabar? - e sou modesta demais para dominar o mundo todinho.

Olhei adiante. Sabia que a estória iria começar nesse parágrafo:

Não estava mais no pasto, havia sonhado, talvez, mas um local fechado – acordei, inclusive, porque sou claustrofóbica – com supostas quatro rodas pesadas que me transportavam com outros desnorteados e avoados bovinos. A porta se abrira. Alguns açougueiros adiantes e algumas noções de realidade apreensiva surgiram nas pobres cabeças dos outros bois. Eis que: uma epifania! Uma visão miraculosa e algum sentimento de justiça que, juro, esse Deus não poderia ter me dado à toa!
E justiça seria feita – dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. E, com alguma ira animalesca e feminina, dou por mim na casa de animais: clientes assustados, carnes derrubadas. Mais nove haviam escapado. Direciono-me a um tal de Orlando, funcionário que salgava carne seca nos fundos, mas ele se tranca no banheiro. Nada. E minha ira bovídea de justiça? E a vontade de trocar a única natureza que possuo? Vá lá, ser assassina estaria mais pra ganhar um novo adjetivo que apenas me complementaria, mas não me faria tornar uma nova coisa, entretranto, ainda assim é mais de uma vida em uma só – e vida justiceira, não era?
Avistei um dos açougueiros. Peguei-o. Machuquei-o. Pisei. Pisei. Justiça era feita?

*suspira de novo*

Não...
Parece que minha suposta epifania teria se esvaído. Se tornar assassina não era criar uma natureza a mais em uma só vida, era só um adjetivo que corromperia – ainda mais - a comunhão de vidas que existia nesta de que vivemos e interagimos agora. E eu, pobre, só uma vaca.

Depois de machucá-lo violentamente, desisti. Das outras vidas bovídeas naquele infeliz recinto não tive notícias, mas eu segui. E tudo isto, apesar de tudo, ainda parece e tem tom de uma piada.
Mas se parei é porque se tornar assassina já não adiantaria – o problema era ser vaca, não era? Mas se tivesse nascido plâncton ou humano o problema seria o mesmo, talvez.

Digo talvez e não com certeza, porque assim deixo existir a dúvida de que não há como saber – uma vez que não posso, e nunca, estar na pele deles - e de que também há: existe a comunhão das vidas, não é? (ora, se deixo de existir, você também e vice-versa... isso não o incomoda?)
O problema era ser vaca? Era. Mas compenetrar em outras mentes e seus complexos mundos – ainda que eu não os conheça intimamente como este corpo – seria o meu placebo para não me cansar por ter uma vida apenas bovídia.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Rapidinha

Há algum tempo atrás censurava os textos espontâneos. Quero dizer, até não, alguns súbitos de espontaneidade criaram interessantes parágrafos, mas a matéria bruta não era usada como viera ao mundo, somente estratificada, triturada, jogado no trigo, amassada até obter uma massa única, levado ao forno e hum... Nem sempre a receita certa. (Acho que devo ter esquecido o fermento.)
Hoje, não. Perdoe-me: agoríssima, nesse instantíssimo, não. Isso porque já perdi algumas pequeníssimas divagações ― e você sabe, as divagações comportam-se da mesma forma que o homem e a mulher em pré-relacionamento o fazem no período da conquista: é preciso muita conversa e muita lábia para que ela ceda. Primeiro, se deve entendê-la, depois captar o direcionamento do assunto ― e é precisto estar precavido de alguma bagagem de conversação, pois, em casos de lacunas "papeativas" (Deus salve a América e os neologismos!), lembrar-se de usar jogo de cintura para voltar a assuntos que o deixem seguro ― e BENG! As mocinholas, os rapazóides e as divagações estão em suas mãos. (Não me pergunte, porém, que diabos de som a onomatopéia ali no meio deveria imitar ou que deveria acontecer nesse meio tempo.)

Ahh... a vida, as divagações, os cosmos e os relacionamentos são questões mais pragmáticas do que contrariamente está incutido na mente dos seres humanos. Às vezes ― digo isso porque estou escrevendo minha divagação, mas, pela cara estranha que essas palavras fazem, devo estar avançando muito rápido neste encontro ― é preciso esquecer um pouco o requinte e, ao partir com espontaneidade, ir despindo uma letrinha aqui, cortejar a virilidade do "R" ali, tocar uma entrelinha... Hummm...

Como vocês podem ver, qualquer asno, livrando-se da artificialidade, pode se meter num relacionamento ou numa divagação ― por piores e efêmeras que sejam.
Nenhuma palavra mais quer ceder a mim, entretanto. (seria o desgosto pela onomatopéia estranha que nos atrapalhou?)

Desconfio que acabo de ter um péssimo encontro.