segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Vaca, não era?

O problema era ser vaca, não era?

Literalmente - e não o adjetivo de mau cunho. Mas bovina: gorda, malhada e tudo.
Talvez. Mas se tivesse nascido plâncton, o problema seria ter nascido plâncton – e seria um problema ainda maior o fato de, porque nasceu plâncton, não ter problema.
“Quem me dera ser um peixe” proferiu, em algum súbito de inconsciência, um tal de Fagner, e eu o teria parafraseado - se ele não tivesse perdido o fluxo de bons fluidos do seu inconsciente e, por um deslize, enveredado por caminhos de más intenções em suas hipotéticas habilidades aquáticas.

Mas esqueçam tantas delongas: o problema era ser vaca. Não teria outra natureza específica que eu almejasse, era só cansaço mesmo – mas se tivesse nascido uma coisa diferente a cada dia, seria constantemente a inconstância, portanto, metamorfose, outra natureza fixa da qual me cansaria, não era? Pensei se teria dado sorte se tivesse nascido humana. Daí lembrei que, como então mulher, acharia um problema achar que nascer como ser humano é um problema – então descartei a ideia.

Voltei a ruminar. Sei que parece ridícula a idéia do pasto em concomitância com os pensamentos filosóficos sobre a vida, mas, em minha modesta opinião de vaca apenas, há diversos comportamentos humanos também questionáveis e nem por isso estou discutindo com você.
Voltando: voltei ao meu pasto. Não era um peixe, já havia me conformado antes mesmo da música – mas tive uma fisgada. Ontológica, digamos. Sabia que se tivesse sido humana, estaria tão intrigadamente em torno do meu âmago que dificilmente pensaria na idéia da comunhão com outras vidas – ora, somos isso tudo aqui, todo esse cosmo, e não é porque entendo intimamente este corpo que carrego e que me pesa que sou apenas isso; como se o meu presente é a vida, o existir, e não este corpo? - e, portanto, dificilmente deixaria de possuir uma vida só humana.

Mas a vida – que por ser tão livre precisa ser segredo - só não é desvendada porque antagoniza o corpo – que é prisão. Mas tenho culpa se eu, vaca, desejo mudar isso nesta vida?
E mudaria, acharia um modo.
Discorreu Luís Fernando Veríssimo – sim, criei a habilidade de ler aqui, sou um animal bovino que sabe desfrutar astutamente das vantagens do mundo literário - em alguma crônica que Napoleão Bonaparte tinha a grande ambição de poder escrever, como não conseguiu, partiu para o plano B de dominar o mundo.

*suspira*

Pensei em mim e como me livrar disto – drasticamente, percebam - que é prisão: bem, escrever não seria para uma vaca nem mesmo aqui – tenho cinco minutos de fama agora, mas e quando minha estória acabar? - e sou modesta demais para dominar o mundo todinho.

Olhei adiante. Sabia que a estória iria começar nesse parágrafo:

Não estava mais no pasto, havia sonhado, talvez, mas um local fechado – acordei, inclusive, porque sou claustrofóbica – com supostas quatro rodas pesadas que me transportavam com outros desnorteados e avoados bovinos. A porta se abrira. Alguns açougueiros adiantes e algumas noções de realidade apreensiva surgiram nas pobres cabeças dos outros bois. Eis que: uma epifania! Uma visão miraculosa e algum sentimento de justiça que, juro, esse Deus não poderia ter me dado à toa!
E justiça seria feita – dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. E, com alguma ira animalesca e feminina, dou por mim na casa de animais: clientes assustados, carnes derrubadas. Mais nove haviam escapado. Direciono-me a um tal de Orlando, funcionário que salgava carne seca nos fundos, mas ele se tranca no banheiro. Nada. E minha ira bovídea de justiça? E a vontade de trocar a única natureza que possuo? Vá lá, ser assassina estaria mais pra ganhar um novo adjetivo que apenas me complementaria, mas não me faria tornar uma nova coisa, entretranto, ainda assim é mais de uma vida em uma só – e vida justiceira, não era?
Avistei um dos açougueiros. Peguei-o. Machuquei-o. Pisei. Pisei. Justiça era feita?

*suspira de novo*

Não...
Parece que minha suposta epifania teria se esvaído. Se tornar assassina não era criar uma natureza a mais em uma só vida, era só um adjetivo que corromperia – ainda mais - a comunhão de vidas que existia nesta de que vivemos e interagimos agora. E eu, pobre, só uma vaca.

Depois de machucá-lo violentamente, desisti. Das outras vidas bovídeas naquele infeliz recinto não tive notícias, mas eu segui. E tudo isto, apesar de tudo, ainda parece e tem tom de uma piada.
Mas se parei é porque se tornar assassina já não adiantaria – o problema era ser vaca, não era? Mas se tivesse nascido plâncton ou humano o problema seria o mesmo, talvez.

Digo talvez e não com certeza, porque assim deixo existir a dúvida de que não há como saber – uma vez que não posso, e nunca, estar na pele deles - e de que também há: existe a comunhão das vidas, não é? (ora, se deixo de existir, você também e vice-versa... isso não o incomoda?)
O problema era ser vaca? Era. Mas compenetrar em outras mentes e seus complexos mundos – ainda que eu não os conheça intimamente como este corpo – seria o meu placebo para não me cansar por ter uma vida apenas bovídia.