quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Enxaquecas, irrelevâncias e mangas

Tudo começa com certos dias de uma específica malemolência e enxaqueca (queixa, inclusive, quase nunca extinta em minha vida).
Qual a minha, portanto? Protelar mais um trabalho para depois. Ok, isso eu consigo. Tirar certos proveitos da fraqueza, como um afaguinho extra de próximos: ai, como dói, como dói, fica aqui pertinho, por favor? Ok, isso eu também consigo.

Dói tanto, aliás, que até intercambiar do conto pra crônica — gênero que, por minha discrição e falta de vontade de conversar diretamente com as pessoas, deixei cair no meu ostracismo particular — tornou-se meio sedutor.
Mas, justo agora, o maior de todos os conselhos (exceto quando dado por Chico Buarque) eu não consigo segui-lo à via de regra: já havia tentado dormir e, ainda assim, não passou.

Sucederam-se, então, horas e horas feitas a esses pequenos golpes de solidão barthianos (notem como minhas expressões estão sendo apelativas para executarem, com sucesso, o segundo exemplo de aproveitamento de fraqueza, no qual vocês, em um honroso e nobre gesto altruísta do dia, podem ajudar a constituí-lo), até que... foi me acontecendo. Eu, que já tenho a cabeça compromissada com um engajamento sério e promissor na filantropia com outros mundos, planos e dimensões, fiquei horas recebendo imagens sem, no entanto, processá-las devidamente nos confins do meu lobo occipital – que tão antes e com tão esforço, ele fazia.

Foi aí que surgiu, simultaneamente com a fraca voz, a falta lexical, as orações subordinadas sem as suas principais (“... que eram lânguidos esses abraços de frescor parisiense”, “... que comia com tanta veracidade, enquanto lembrava do professor”), perpassando até então por aleatórios pensamentos que, se não tinham sentido semântico e/ou sintático, eram ainda inocentes. Foi quando beirar a superfície do pensamento não foi suficiente. Eu sabia, quase podia sentir a construção de “A bunda, que engraçada...”. Nem a linha de raciocínio mais leviana passa incólume à experiência de um indivíduo. Há alguma profundidade pueril nas idéias leves (que provavelmente são apreendidas em uma dessas viagens filantrópicas transcendentais – e que não se entendem bem na volta, porém).
Foi assim, quando o organismo, sem respeito algum a mim e ao meu enjôo da enxaqueca, resolve atestar fome.

Quer iogurte, querida? Não, mãe, muito doce. Mas você também não quer jantar. Não quero comida de verdade, nem pão, nem nada salgado; é algo meio gelado, acho. Ah, então tem sorvete, querida. Não, não, é muito doce também. Então, o quê? Ah, tem manga? Sim, é isso! – dizia eu, após um perfeito e exato fluxo de consciência. Mas você acabou de comer, lindinha, você só está comendo isso. Que o seja, traz, por favor.

Minha mãe, pensando, ergue os olhos para cima e para esquerda (e assim sei que não mente, mas está a lembrar de algo, acredito, realmente relevante nesse momento decisório sobre o rumo que minhas posteriores horas de pequenos golpes de solidão irão tomar)

– Mas, meu amor, eu não sei cortar daquele jeito.

Entenda “aquele jeito” o jeito que a moça que trabalha aqui em casa sabia. E ah, eu também não sabia. Mas, e agora? Mesmo os pensamentos levianos podem se tornar ideias fixas – e não tem nada de inocente na profundidade das consequências de uma ideia assim, certo?
Então não quis. Se não era cortado daquele jeito, então tinha de comê-la aceitando o ritual de ter de se melar e passar pela casca e pelo fiapo que engloba o “chupar uma manga” (além do fato de, semiologicamente falando, eu odiar esse verbo e ter de ser obrigada a usá-lo, pois não poderia negar o processo)

E fui ficando assim, solta, a condicionar a melhora de cada tinir da minha cabeça à essas mangas e irrelevâncias. Mas é inútil dormir, afinal elas não passam.

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