segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Meio cheio e meio vazio

- Boa tarde, querido psicólogo, perdoe-me o atraso – sacudia os pelos – não sabia que teria de derrapar pela vala para ter de adentrar no Departamento das ideias inconcebíveis – voltava a verificar no papel o endereço do local – espero que não se importe com meu modo de fazer higiene – dizia, enquanto já lambia todo o pelo encharcado da água imunda sem algum constrangimento.

Do outro lado do divã, residia sob o assento um velho recalcado, de vestimenta tamanho GG surrada e abatida, acompanhado de uma caixa de lenços à esquerda e um monte de lenços usados empapados em suor jogados à direita. Observava com seu não tão útil monóculo a criatura que tinha invadido seu escritório.

- Olivas. Querido psicólogo, não. E você, senhor, a que devo... – retirava e recolocava o monóculo a fim de tornar mais crível a criatura que requisitava sua ajuda – por favor, antes, me diga o que exatamente você é!

- Querido Olivas, que faculdade te graduou?! Esperava mais delicadeza ao me interpelar.

- Você sabe por que tem de passar por um esgoto para chegar aqui, não sabe? Não faço muito sentido e mesmo semana passada, tive um trator com problemas existenciais como paciente... – olhava novamente a figura do divã – mas esse rabo eriçado com essa gravata engomada me assusta.

- Isso, sou uma espécie intermediária entre um hominídeo e um felino – debruçava-se de costas, enquanto retirava prontamente de seu paletó um novelo de lã – esta é uma de minhas engenhocas: meio novelo, meio iô-iô. Tenho a preguiça e a manha do gato, mas nem por isso relego os entretenimentos humanos – dizia com tanta segurança e soberba, que passava ser fácil julgar o meio-homem-meio-felino num bicho muito do sensato.

Olivas suava em bicas.

- O seu, hm... o seu problema, por favor.

Meio-felino estendia-se para se sentar, com toda a manha e carisma.

- Estou preguiçoso, Ol. Foi assim que me tornei miscigenado. Devia ser completamente uma destas criaturas. Mas perdi o foco e não sei – na verdade, tenho preguiça de pensar se sei – se isto pode me arruinar ou não. É como se o cacau pudesse formar um chocolate que é meio amargo, mas que não deixa de ter o meio doce.

O psicólogo o olhava atentamente, tentando entender qual o ponto a se entender da metáfora.

- A questão é: tudo que é meio vira dois pequenos inteiros ou só meio mesmo?

- Desconfio que seu caso seja pior e menos comestível que o exemplo.

- Você atendeu um trator.

- E você está sendo prolixo.

O meio-hominídeo se espreguiçava de quatro.

- Vou começar: era ambicioso, mas virei preguiçoso, logo meio trabalhador, meio vagabundo. Não sou magro, porque exercício físico me aborrece. Também não sou gordo, porque se queixar dá preguiça. Sou meio astuto, porque adquiri a engenhosa malícia de desviar de momentos fatigantes. Mas sou meio burro, porque franzir a testa pra muito refletir me cansa hoje e me cansará em problemas futuros com rugas. Já fui meio subordinado, depois meio CEO e consequentemente nesse “meio”, não fui nenhum dos dois exatamente ou fui os dois inteiramente em proporções menores – cuspia bolas de pelos, enquanto ajeitava a gravata – entende meu ponto? Não virei meio-bicho-preguiça porque alguém devia achar meio óbvio.

O psicólogo jogava seu monóculo sobre a mesa: “que saudade do trator!”

- Você não está meio confuso? – dizia ele então com pouco entusiasmo.

- E você meio com preguiça, Ol! – começava a se sentir ainda mais nervoso – Cuidado, se te vicias, não vá querer conversar comigo sendo meio-camundongo!

Subitamente, no divã, após uma grande carga elétrica desencadeada pelo acelerado e irreal batimento cardíaco ocasionado pelo seu meio estresse, meia altivez – o que Olivas e nós, particularmente, julgamos sem sentido – meio-hominídeo-meio-felino metamorfoseou num meio hominídeo-meio-enguia.

O caro Ol bebia um gole de café “trator, trator, ahhh trator...” e se dirigia à porta, pois já não era mais seduzido pelos ternos olhos de seu antigo paciente bola de pelos.

Num desatino final, então, a parte hominídea, ainda molhada da água suja, recebe uma descarga de 3 ampères da parte enguia. Enquanto enguia, se sentia feliz o hominídeo por realizar a sua preguiça de viver, enquanto a outra parte desfrutava o prazer de não participar do impacto que era deixar de existir.

A nossa sorte é que o fim, por ser uma estória (mesmo meio estúpida), é inteiro.

2 comentários:

Carla disse...

Isso dá muita vontade de tornar filme e tornar empaginado. Animação, "normal", curta, qualquer coisa mas que seja um filme. Encenar em palcos seria difícil infelizmente ):

Anônimo disse...

seguindo segue meu blogger?
perfeito o seu *-*