sexta-feira, 23 de julho de 2010

Memoria praeteritorum bonorum

Num cenário cuja importância é ínfima, lá estavam ele e ela (cuja importância do grau de intimidade deles é ainda menor) a contemplarem o único vazio de vazio que era o próprio quarto: a própria janela, embora fechada — cuja importância é, finalmente, desprezível.

Mas veja, bem, foi melhor assim. Você ainda vai perceber — falava ele exasperadamente a uma ela transtornada e soluçante.

Bem, mas que bem? Era a melhor coisa que me tinha acontecido — assoava seu nariz na manga dele e berrava encarecidamente. — aqueles olhos ternos, os lábios miúdos, acanhados... o rosto abarrotado de pêlos (embora sempre bem feitos) e o que dizer de todos seus gestos complacentes e seu modo galante de se portar? Tinha o humor ácido, embora refinado e sutil. Era um 'gentleman', embora também soubesse ser homem — relembrava-se e parava num súbito com um olhar distante, em seguida, tornava a chorar num berro — ahhh, se sabia...

Estou dizendo: isso passa, minha querida

E por acaso já aconteceu com você?

Acontece com as pessoas o tempo todo. — parava e estudava as próximas palavras — e todas elas continuam a viver, sabe. Até, quero dizer, terem de ser perturbadas pela expectativa de vida do país em que estão, claro, e aí usadas como fonte de estudo. Mas isso não vem ao caso.
Ela tornou a berrar.

Olha, se é que isso serve de consolo... se você fosse mil pessoas, sabe, você causaria algum déficit no seu país. Mas você é só uma! Olhaí — e sorria — que beleza!
Ela tornava a berrar.

Ele, então, meio constrangido, buscava ensandecidamente uma solução para tamanha falta de jeito:

Veja, meu bem, vamos fazer uma análise introspectiva do seu caso, tá? Vamos, relembre-se: o que mais te satisfazia nesse relacionamento?

- Então, não sei decerto. Ahh, se você o conhecesse, também se apaixonaria torridamente. — ela ignorou seu olhar de estranhamento — Como dizia: aquele humor refinado, aquela mente cognitivamente privilegiada, incomensurável e ginecologicamente atraente... — atordoou-se um pouco, mas tornou a olhar para ele com um resto de sobriedade — Digo, acho que eram seus olhos ternos e a boca carnuda mesmo.

Os lábios não eram miúdos?

Isso. Miúdos. É que dependiam do ângulo do espectro de luz que incidisse sobre seu rosto.

Ah. E os olhos eram turvos, não eram?

Isso. Intransponíveis! Mas quando conseguia captá-los, de alguma forma, não pareciam querer bem sequer a uma formiga.

Ele, então, virou-se um pouco para a janela como quem não soubesse exatamente as próximas respostas, embora pudesse prever certeiramente, pelo menos, suas reações posteriores.

... E o rosto plano, macio...

Não era abarrotado de pêlos?

Sim, era. Digo da parte feita, então. — ela olha de volta atordoada a ele — Na verdade, não sei o que está me acontecendo. É você quem está me fazendo isso?

Atualmente, não. Entretanto, considerando o seu recorrente comportamento, você pode me tornar um mago ou o que bem entender quando quiser, logo depois!

Ela o olhava e perscrutava intimamente seu rosto. Num súbito, então, arreganhou seus olhos e boca, como se tivesse sido guarnecida da mais completa e divina luz:

Mas, meu Deus, você só deve ser um mago!

Querida... — ele falava pacientemente — Não sou. Nada contra, mas, vai por mim, não sou.

Ela olhava

— É, sim.

— Não

— É!

Dane-se — virava a cabeça — Continue sobre sua quimera...
Pois é, se bem me lembro o seu rosto espetava tal como um cacto mesmo. — lembrava-se — Credo, e tinha um humor de um pedantismo... desnecessário! Lembro até de certo tempo que comecei a fazer certo esforço para rir de suas piadas incômodas e nem um pouco elegantes. E os olhos? Tinha mais pés-de-galinha que a própria ave. E a boca? Tinha uma mandíbula enorme, já o vi rugir certa vez. À noite, compartilhando da mesma cama que ele, tinha péssimas experiências oníricas envolvendo o dilaceramento de meus braços como resultado de mordidas sanguinárias dele — talvez porque o tenha visto almoçar certa vez. Espreguiçava-se de quatro e restos de papel higiênico sempre o acompanhavam tornando-o um animal rabudo e ajudando a definir, por fim, esse bi-zar-ro ser sub-humano que eu... que eu... ah, que eu tive o quê mesmo?

Um relacionamento, se me lembro bem.

Ah — tinha seu último tom de perplexidade — É isso. Obrigada, você, de todo jeito. Acho que realmente passou...
Virou-se e caminhou em direção à janela. Abriu-a. Enxergava tantas outras quimeras. Pensou que não, então. Portanto a fechou. Abriu de novo.Vista limpa de bestas mitológicas. Não sabia mais distinguir o real e o relatado homem. Entretanto, não era no quarto oco que iria conseguir ativar sua memória - além de que, sem o quarto, não se tornaria essa pessoa ensimesmada que estava sendo.
Fugiu, portanto. E sempre preferiu pensar que o tal homem do quarto era um mago — e de que havia escapado de um brutal assassinato por um ilógico leão, do qual ela própria havia sido cúmplice de sua criação.

Um comentário:

Josiana Rezzardi disse...

Quem dera se, no fim, eles não passassem de meros magos.
Amei seu estilo de escrita, parabéns!